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O elogio das pessoas simples

por vanita, em 16.02.15

São simples, as pessoas simples. Gostam de ser, de ver, de partilhar, de rir e chorar. Simplesmente, sem subterfúgios. Chamam-se Cátia Vanessa porque ouviram o nome na novela e gostaram. E gostam de contar esta história. Fazem-no com um sorriso de cumplicidade, de quem quer revelar um segredo de que se orgulha. Não sabem que ter um nome inspirado numa novela arrepia as pessoas que já não são simples. Como não sabem, sorriem, orgulhosas. Também se riem e choram e ficam felizes por poder contar o que as apoquenta no dia-a-dia. Com simplicidade. Falam alto, usam gestos largos e generosos e o brilho nos olhos é equivalente ao que dizem. As pessoas simples não se escondem atrás de ideias e conceitos, de posturas e formas de estar. São assim e sabem que o Mundo é igual. Ainda não aprenderam a mostrar o que não se sente a bem das convenções e do parecer bem. Também têm códigos e condutas, também se irritam e zangam, também usam de falsidade e outros atributos menos positivos, mas fazem-no de forma simples. As pessosas simples denunciam-se em cada palavra, são claras e transparentes e, nem por isso, deixam de ter ambição, de fazer planos e de querer um dia ser alguém. Mas ainda não estão corrompidas pelas regras de etiqueta ou pelos espartilhos que regem as pessoas que um dia foram simples.

Nasceram na terra, vão ao café da aldeia, bebem vinho na tasca, participam nas festas da colectividade e vêem os programas do day e do prime time em televisão de canal aberto. Conversam sobre as últimas intrigas dos reality shows e têm opiniões sobre os temas quentes do Correio da Manhã, que discutem alegremente com quem se aproxima da mesa do pequeno-almoço. De vez em quando lêem e gostam de falar sobre isso com gente que tem "mais cultura". Enchem a boca para dizer que gostam de Dan Brown, Nicholas Sparks, Miguel Sousa Tavares ou José Rodrigues dos Santos, enquanto esperam um sinal de aprovação do outro lado, a senha de que se entrou para um clube restrito. Simples, as pessoas simples, acreditam que lêem os melhores autores e mostram-no com a generosidade de quem espera esse reconhecimento. Não distinguem o secreto torcer de nariz das pessoas não simples, aquelas que já aprenderam que isso não é literatura que se apresente, menos ainda que se torne pública. Ai delas que algum dia o dissessem com esta leveza nos círculos que se movem. Isso é para o povo, para as pessoas simples.

Formadas em universidades das grandes cidades, ou apenas com a escolariedade obrigatória, as pessoas simples nunca perderam o cordão umbilical que as liga à terra onde nasceram e às pessoas da sua origem. Movem-se num meio restrito e pertencem a uma comunidade. Representam o papel social que sempre lhes coube e fazem-no com a consciência de que a vida é mesmo assim. Não fingem ser o que não são. Ou, se o fazem, não têm qualquer êxito e esse passa a ser um papel aceite pelos restantes membros. Descascam laranjas com os dedos e não se importam com o cheiro que fica entranhado nas mãos, matam coelhos com um golpe bem dado no pescoço e degolam as galinhas da capoeira para a canja, deliciam-se com os legumes da horta e fazem gala da sardinha no pão. No fim, lambem os dedos com gosto e a certeza de que está tudo no devido lugar. É assim que se faz. Nem se percebe como é que alguém pode comer um frango assado de faca e garfo, argumentam, cheios de convicção, perante o horror mal disfarçado das pessoas que perderam a frescura da simplicidade.

As pessoas simples montam casa e casam-se, com uma festa para a família e os amigos. Depois têm filhos. Não se perdem em divagações filosóficas, metafísicas, pessoais ou profissionais. Cumprem-se e perdem-se nessa missão. Na missão de serem simples. Invejam os outros, os não simples, os que foram atrás de algo que nunca encontram, os que saíram da zona de conforto, aqueles que quase nunca chegam a casar-se ou, pior ainda, que nem sequer têm filhos. Morrem de inveja porque gostaríam de saber como é ser-se livre dessa maneira. As pessoas simples não sabem que a liberdade de se ser livre é cheia de espartilhos, preconceitos, solidão e lágrimas. As pessoas não simples não se permitem viver com simplicidade. Realizam-se nas convenções sociais e profissionais e, não raras vezes, acreditam que são felizes. Perderam o jeito simples e o mundo intrincado que os suporta também os alimenta. Mas não se conseguem rir com espontaneidade. Muito menos chorar. Não são simples.

Incapazes de largar as correias que abraçaram aos poucos, sem dar por isso, as pessoas que um dia foram simples ambicionam ser o que não são. Querem pertencer a um grupo, a uma elite ou a uma classe e, despojadas da simplicidade, usam de artifícios que lhes foram ensinados desde tenra idade ou que aprenderam por meios próprios, através de observação ou imitação. Sem se aperceberem, desembaraçam-se do jeito genuíno, da autencidade e da personalidade vincada e bem definida para se enquadrarem num ideal que constroem, sozinhos ou em conjunto com outras pessoas que também já não são simples. Apoiam-se mutuamente, os que deixaram a simplicidade de lado, e isso dá-lhes força para continuar. Despidos do que são, aquecem-se com a cumplicidade dos que, como eles, também vagueiam na busca do que perderam. Até ao dia em que, sem dar por isso, elogiam as pessoas simples.

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10 comentários

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Luís Alves de Fraga a 21.12.2015

Gostei muito. Por que não mais?
Não acredito que seja por falta de fita na máquina de escrever!
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vanita a 23.12.2015

Obrigada pela sua opinião. Um dia, quem sabe, ganho coragem para mais :)
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Projeto em Branco a 16.03.2016

Adorei ler este post, deveras inspirador! :)
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vanita a 16.03.2016

Obrigada, Kelly. Também gosto muito do teu blog.
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Maria a 17.05.2016

Este texto é simplesmente maravilhoso.
Retrata na perfeição a vida simples das pessoas das aldeias. Mas é lógico que também vive lá muito boa gente de nariz empinado!
Parabéns, é um dos muitos textos que adorei ler!
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aalmeidah a 12.07.2016

Bom texto.
Aves raras nos dias que correm. :-)
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vanita a 12.07.2016

Obrigada. Queria escrever mais mas tem faltado inspiração :)
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Marta Elle a 12.08.2016

E gostarem de ler já não é mau...
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Susana a 03.01.2017

Parabéns adorei o post, inspirador muito bonito.
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Teresa Patrício a 02.07.2017

Gostei muito. Já tenho refletido sobre este assunto e concordo inteiramente. Continue a escrever.

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